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Monólogos com Nadi

a) Hoje vesti uma saia e não me senti bonita. Olhei para o espelho e não vi ninguém. Tentei procurar o quer que fosse mas do outro lado se instaurou um grande nada. Ninguém. Estava sozinha e mal vestida. Fui ao quarto e troquei tudo, mas essencialmente, troquei de roupa.

b) Nadi, acho que o mundo está doente. Sofre de males incuráveis de amores crónicos. Até entendo que as gentes de hoje sinta a necessidade gulosa de comprar e jogar fora, como embalagens de plástico, o que se vende e brilha em montras e espaços fluorescentes. Não me tinha apercebido é de que o amor também estava em saldos.
Corrige-me se estiver errada, não era pressuposto ser um bem de afeição perpétua? E, no entanto, o mundo diz-se carente, com falta de ternura e afecto. Pelo menos, é aquilo que qualquer gente, como quem me cruze na rua, prega a quem queira ouvir. Onde é que eles falham Nadi? Porquê esse tédio? Essa constante troca. Esse “não-se-dar-ao-trabalho” e tratam o amor como de uma capote gasta. Repara que até é irónico. Já notaste a mecânica do gesto de se usar um preservativo? Não é irónico a verificação do mesmo no movimento das relações?
Tu vais dizer-me que digo coisas tontas, porque ando com o coração triste. Dizes-me que deveria ouvir-me mais vezes e deixar o mundo ir à descoberta dos seus psicólogos, consultar psicanalistas, conselheiros matrimoniais, sexólogos ou tarologos.
Estás olhar para mim? Ainda por cima com aqueles olhos de quem procura mais do que devia e até encontra. Perguntas-me o que é que (realmente) se passa. A mim, basta-me encolher os ombros. Evito de chorar. Tu percebes e não insistes na pergunta, em vez disso, agarras em mim e esconde o rosto na curva do meu pescoço. «-Cheiras bem.»; dizes. Eu nem me lembro se tomei banho.

c) Ainda falta uma eternidade antes de começar. Entrei porque lá fora está frio e chuva. E hoje, logo hoje, sai de casa sem casaco. Estou com fome mas a tristeza até camufla o ruído hediondo do meu estômago. Queria muito falar contigo, Nadi, porque cada vez que fico neste estado de (pseudo) depressão-compulsiva tu nunca me dizes nada. Não inventas discursos de demagogia floreada de como tudo vai, novamente, correr bem. Limitas-te a ouvir-me num rosto fechado, onde me é impossível entender a linguagem dos teus pensamentos.
Não moves os olhos, nem acenas com a cabeça. Simplesmente, fixas-me com o olhar demasiado aberto. Mas sei que me estás mesmo a ouvir. Desconfio até que registas palavra a palavra como se a curva do teu ouvido fosse um gravador que trabalhasse em simultâneo com as pequenas movimentações da minha boca.
As vezes, mas só as vezes, gostava que me calasses com a tua boca, e talvez, aí dizeres o que toda a gente diz: «- Vai tudo, novamente, correr bem.» Não posso prometer que iria concordar. Iria pensar que te cansaste de toda a rotatividade do meu discurso que está triste. E que esse beijo seria simplesmente um gesto de desespero de causa. Acho que, afinal, não seria boa ideia. Ficaríamos ambos sem saber como agir. Paralisados pelas convenções sociais que para momentos como estes não têm um guião de instruções e, provavelmente, num ataque de genuína compaixão pela causa sussurraria: «-Nadi.» Aí, eu sei que irias olhar para mim, e perguntar-me afinal que peça é que fui ver. Eu, ainda semi envergonhada, encolheria os ombros e responderia: «- Não sei, Entrei porque estava frio e chuva, lá fora.»

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